Saturday, May 10, 2008

O livro na sociedade pré-consumo

O livro aqui vive ainda em uma sociedade de pré-consumo, a brasileira. Em um estágio de pré-consumo, em grande parte do mundo. Quando se anuncia a era do pós-consumo para outros bens duráveis mas "perecíveis pela obsolescência natural ou programada"que podemos trocar por novos, isto não é verdade para o livro no Brasil. A despeito de todos os avanços, da multiplicação de redes de livrarias, dos programas governamentais, dos blogs especializados. Há o fechamento de livrarias, tradicionais, históricas e novas. Ninguém se importa. O que vale é o estardalhaço do marketing, que não corresponde à realidade. À verdade. Às reais necessidades desse mercado vilipendiado e sem a política necessária, que contemple a bibliodiversidade, além do "mix" repetitivo em todos os pontos de venda em que o modismo prevalece às necessidades culturais da saúde cidadã. Já há público reclamando, pois bons leitores se incomodaram ao serem tratados como se suas necessidades de leitura se restringissem a alguns títulos da moda. Estamos com falta de livreiros, mais do que pontos de venda. Estamos com falta de livreiros nos pontos de vendas. Claro que precisamos da multiplicação de livrarias, grandes redes que acolham a diversidade (como a Livraria Cultura, Saraivas hoje e Travessa), o que não ocorre infelizmente em redes de outros pontos do Brasil, presas ao óbvio apenas. O interior do Brasil ainda é um deserto. Não há livrarias nas cidades médias e pequenas E a venda de livros porta-a-porta tem seu lado bom, teve seu lado melhor, quando vendia bons livros, hoje vende mais quinquilharias, produtos berrantes como coisitas de camelôs, brinqueditos horrorozinhos, como se fossem livros. Participando de uma feira de livros em Goiânia (onde vendi bons livros), fomos a um desses depósitos de empresário do livro porta-a-porta. Uma energia voltada à venda de milhares de livros-brinquedo-quinquilharia. Que desperdício. Faz tempo, mas essa tristeza carrego comigo. Há também as apostilas montadas com pedaços de nossos livros, um desrespeito aos catálogos das editoras, pois muitas vezes são cópias desvirtuadas. E ganham dinheiro com isso.

Precisamos criar o consumo de bons livros, em todo o país. Bons livros de catálogo. Respeitar os catálogos de todas as Editoras. Respeitar os autores, mantendo a fidelidade aos textos originais. Uma história é forma de contar, mais do que o fato. O respeito aos autores deve prevalecer mesmo que ele tenha optado pela permissão de divulgar seus textos de forma gratuita e para fins gratuitos, mesmo que sua obra seja de domínio público.

Havia no Estado de São Paulo um programa chamado "Biblioteca do Professor", uma programa da Secretaria de Estado da Educação. Por que não prosperou? Comprar livros para o professor é melhor do que fazer apostilas. Editoras estão recebendo solicitações para darem licença de uso de textos de suas obras para comporem apostilas que serão distribuídas aos professores. Fundações têm sido contratadas para isso. Não é mais fácil fornecer livros em amplo sortimento aos professores, revitalizando ou implantando nas escolas a "Biblioteca do Professor"? Isto é obra para o Ministério da Educação, obra para todas as Secretarias de Estado da Educação.

O Estadão, em um dos editoriais deste ano, elogiou as apostilas. O bem que fazem ao professor. Eu contraponho dizendo o mal que fazem à formação dos professores e ao mercado editorial, ao consumo necessário do livro. Se todos gritam pela sobrevivência, os editores também estão gritando pela sobrevivência. Ninguém sabe, ninguém imagina as dificuldades de um editor, sobretudo as dificuldades dos pequenos editores, que ousam fazer mais os chamados livros de oferta do que as obras de demanda. Com os livros de oferta, imprescindíveis, tentamos criar novas demandas. Isto fizeram os grandes editores do mundo (grandes em termos de notáveis pelas edições de criação), criaram demandas para a posteridade. Professores precisam de receber livros como seus alunos recebem por intermédio do Programa Biblioteca da Escola do FNDE, hoje contemplando o catálogo da maoria das editoras, grandes, médias e pequenas.Temos de levar o livro para o consumo, não sabotar esse consumo com quaisquer medidas que impeçam a sobrevivência do mercado editorial num estágio pré-consumo do livro, imagine então do consumo do bom livro.

Temos de tornar o livro objeto cotidiano do desejo, não sabotar o seu consumo, com medidas bem-intencionadas mas equivocadas, como foi aquele programa criminoso com o catálogo das editoras e com a democracia da leitura, os livrinhos frankensteins do "Literatura em Minha Casa". Boas intenções pedagógicas que privilegiaram grandes grupos e cortaram o acesso às obras originais de grandes autores. Houve uma reação da maioria editorial e o Ministério da Educação se sensibilizou, quando era ministro Tarso Genro. Nem o esclarecido senador Cristovam Buarque se deu conta do problema, embora tenha recebido nossos representantes com a sua cortesia de praxe. Não interrompeu o programa, enganando-se com a sua aparência bem-intencionada. Mas era um crime lesa-catálogo. Além de vedar o acesso dos leitores pobres aos livros de verdade. Uma boa intenção gerando exclusão social às caprichadas edições de catálogo, com suas ilustrações originais. Tanto é que ilustradores, editores, designers, tradutores se mobilizaram contra esse equívoco meramente pedagógico desfigurador de obras originais, anticultural e antieducacional, porque cultura e educação são indissociáveis. Criou-se uma gingana tão perversa entre os editores que queriam levar a melhor fatia nesse jogo, que livros de autores clássicos tiveram capítulos truncados para caber no formato e obedecer ao número de páginas receitado. Isto acabou. Fortalecer os catálogos de todas as editoras, grandes, médias e pequenas. Isto é o mote hoje. Que tenha continuidade.

A "Musa Ambulante", este projeto que quer criar pontos móveis de cultura e venda de livros, também pontos móveis de leitura, com contatos com autores e leituras comunitárias, bem como representações de esquetes ligadas ao livro (uma ex-jornalista que tem um grupo de teatro, a Erica Knap, criou um esquete "Louca por livros", que já representamos na porta da rua da Editora Musa e foi um fim de tarde memorável para convidados e passantes, queremos continuar), portanto, repito, "A Musa Ambulante: livros ao encontro do leitor" está pedindo um carro para a Fundação Volksvagem ou para a montadora que tiver sensibilidade para promover o consumo do livro no Brasil. Estamos ainda na era do pré-consumo do livro no Brasil. Aceito parceiros, além das montadoras. Fiat, Ford, GM, Mercedes, as francesas Renault e Peugeot, quem quiser dar apoio cultural, fazendo o papel histórico de ajudar o livro no Brasil a sair da era do pré-consumo à era do consumo. Olá, Chicolelis, que compareceu a um dos nossos eventos, lançando seu livro infantil "Pra fora, Rex", da parceira Editora Alis, de Belo Horizonte, gostaria que estivesse lendo o meu blog.

Infelizmente eu não tenho vocação para me envolver com leis de incentivo à cultura. Não sou esperta. Aprovar um projeto pode até ser fácil. Eu prefiro a sensiblidade dos mecenas voluntários, ou verbas direcionadas como tem o Ministério da Cultura da Espanha. Sem burocracia, fizemos duas traduções com o apoio cultural espanhol. Agora vou atrás dos franceses, porque tenho interesse pessoal em livros da França, é mesmo questão pessoal, pois fui educada no amor à cultura francesa, embora tenha interesse pela cultura de todos os países. Mas a França é uma questão de escola. Vem do colégio. Aprendi a França no colégio. Conheci grandes poetas franceses do século XIX no colégio. Éramos peraltas adolescentes e brincávamos de ser Madame tal poeta. Nem me lembrava disso, Madame Sully Prudhomme, Prêmio Nobel de 1901. "Ninguém me ama, ninguem me quer, ninguém me chama de Baudelaire" (Antonio Maria). Por isso sou contra ao estabelecimento de faixa etária nos livros para criança. Boa literatura, em qualquer linguagem, clara ou obscura, simples ou complexa, é aquela que dá prazer estético a todas as idades. Na Biografia de Nicolau Maquiavel, de Roberto Ridolfi, Tradução de Nelson Canabarro, publicada pela Musa e nos sites e prateleiras das boas livrarias do Brasil, há uma frase no capítulo sobre a infância do florentino: "Aos sete anos, Nicolau dava os clássicos."

Diante de todos os infortúnios, sabotagens aos melhores projetos, atentados à vida das editoras e seus editores, atentados à democratização dos bons livros, todos os atentados contra livrarias e livreiros e sua sobrevivência, grita o verso de Rimbaud: "Par délicatesse, j'ai perdu ma vie."

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